sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

(Adélia Prado)
“A experiência amorosa exige sacrifício. Não se ama para ser recompensado. O amor é sua própria recompensa. Não resisto em citar Drummond falando da poesia coisa parecida: ‘Poesia, o perfume que exalas é tua justificação’. Não há amor fácil, mas todo amor é maravilha, saúde, ‘remédio contra a loucura’, coisa que Guimarães Rosa ensinou. É a experiência humana mais exigente; não é contrato, troca de favores, investimento, é entrega e compromisso. Do ‘sacrifício’ de amar nasce a mais perfeita alegria. Ninguém faz cara feia quando se sacrifica por amor. Não se trata de anulação, subserviência de quem ama, trata-se da morte do ego, tarefa a ser feita até o último suspiro.”

(Adélia Prado)
Doida ou santa?
Sou doida, sou santa.
Sou doida (mesmo sabendo que a palavra é forte) quando me perco de mim e solto os bichos todos que me habitam.
Sou santa quando aceito que tenho que cumprir meu papel.
Sou doida quando desacredito das pessoas.
Sou santa quando encontro quem compartilha da minha luta.
Sou doida quando quero falar tudo que sinto.
Sou santa quando consigo me calar.
Soi doida quando acho que todos têm que pensar como eu.
Sou santa quando entendo que cada um é um e vê a vida com as lentes que tem.
Sou doida quando espero das pessoas o que não podem dar.
Sou santa quando percebo que nem todos têm o que dar.
Sou doida quando acho que basta querer para conseguir.
Sou santa quando me curvo à vontade de Alguém maior que eu, que me ensina a esperar.
Sou doida quando quero que tudo seja do meu jeito.
Sou santa quando aprendo que cada um tem sua maneira de ser.
Sou doida, sou santa, sou tantas.
Principalmente sou eu.
Com minhas doidice e santidade, cada uma na sua hora, atuando de acordo com a necessidade.

( Adélia Prado)
"Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim."

( Carlos Drummond de Andrade)

Talvez sementes...




“Eu pertenço à fecundidade
e crescerei enquanto crescem as vidas:
sou jovem com a juventude da água,
sou lento com a lentidão do tempo,
sou puro com a pureza do ar,
escuro com o vinho da noite
e só estarei imóvel quando seja
tão mineral que não veja nem escute,
nem participe do que nasce e cresce.

Quando escolhi a selva
para aprender a ser,
folha por folha,
estendi as minhas lições
e aprendi a ser raiz, barro profundo,
terra calada, noite cristalina,
e pouco a pouco mais, toda a selva.”

(NERUDA, Pablo. O Caçador de raízes. Antologia Poética, José Olympio, 1994, p. 232.)
(...)
Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo me parece estranho; se quero, o que quer é qualquer coisa em mim.
Sempre em mim há acção, reconheço que não fui eu.
Se sonho, parece que me escrevem.
Se sinto, parece que me pintam.
Se 
quero, parece que me põem num veículo, como a mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.
(...)

(Bernardo Soares)
Senhor
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.

(Sophia Mello Breyner)
Creio no incrível, nas coisas assombrosas, na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o Amor tem asas de ouro.

Ámen.

(Natália Correia)
Hoje de tarde
pus uma cadeira no sol pra chupar tangerinas
e comecei a chorar,
...até me lembrar de que podia
falar sem mediação com o próprio Deus
daquela coisa vermelho-sangue, roxo-frio, cinza.
Me agarrei aos seus pés:
Vós sabeis, Vós sabeis,
só Vós sabeis, só Vós.

(...)

Não queria palavras pra rezar,
bastava-me ser um quadro
bem na frente de Deus
pra Ele olhar.

(Adélia Prado, do livro A duração do dia)
Com tanto potencial pra acabar com a minha vida, sabe o que ele quer? Me fazer feliz. Olha que desgraça. O moço quer me fazer feliz. Veja se pode. Não dá, assim não dá. Deveria ter cadeia pra esse tipo de elemento daninho. Pior é que vicia.
 Não é que acordei me achando hoje? Agora neguinho me trata mal e eu não deixo. Agora neguinho quer me judiar e eu mando pastar. Dei de achar que mereço ser amada. Veja se pode. Chega um desavisado com a coxa mais incrível do país e muda tudo. Até assoviando eu tô agora.

(Tati Bernardi)